José Manuel Pureza foi um dos apresentadores do livro A FOTO em Coimbra e as palavras, repassadas de simpatia, que dedicou aos autores a todos sensibilizou sobremaneira. Agora oferecemo-las aos leitores do blog e do livro porque se elas dizem muito sobre aqueles anos 60 amortalhados pela ditadura dizem também muito, indiretamente, sobre quem as diz.
Eis o que José Manuel Pureza disse em Coimbra, em 19 de Novembro de 2011:
Raimundo Narciso
começa o seu capítulo neste livro citando um excerto de Sophia de Mello Breyner
Andresen. É belíssimo e é uma belíssima síntese do espírito e do conteúdo deste
livro. Diz assim: “Este é o amor das
palavras demoradas / moradas habitadas / Nelas mora / em memória e demora / o
nosso breve encontro com a vida”.
O livro que aqui
estamos a apresentar assume esse propósito de resgatar, em memória e demora, o
breve mas denso encontro com a vida de oito jovens que, com mais treze outros,
tiraram uma fotografia de circunstância, em 1963, no campo de futebol do
Técnico. A revisitação desta fotografia é um exercício muito semelhante ao que
o Professor Keating – personagem imorredoura de “O Clube dos Poetas Mortos” –
fez com os seus alunos: ao olharem intensamente para as fotografias dos antigos
alunos da academia de elite que agora frequentavam, os alunos de Keating ouviam
os sussurros insistentes de “carpe diem”
como desafio às suas vidas. Assim também nós, os leitores de “A Foto”, olhamos
para a fotografia que motivou a escrita e ouvimos distintamente o Jaime Mendes,
a Noémia de Ariztía ou o Joaquim Letria a falarem-nos da “sociedade tacanha e
retrógrada (…) (que) não aceitava facilmente os jovens a intervirem e a
contribuírem para as grandes mudanças que se avizinhavam como certas” – como
escreve Teresa Tito de Morais – ou da “prossecução da utopia e a confiança num
futuro melhor pelo qual vale a pena lutar; (…) (do) sentimento da importância
da nossa ação individual e coletiva; (ou da) vivência da generosidade e do
companheirismo, da alegria de viver, pensar e agir” – como escreve Mário Lino. Tirada
no Portugal cinzento escuro em que se estudava para ter um modo funcionário de
viver – e em que, como escreve Raimundo Narciso, “pior que os sustos era o medo
que todos os dias de mansinho se insinuava nas vidas de quem não fora feito
para estas vidas” – a foto traz sussurros de um claro carpe diem pronunciado no Português da primeira metade da década de
sessenta.
É significativo que
se trate de uma rememoração coletiva. Porque isso mostra como a política era,
mais que tudo, um compromisso em que estar com os outros e tecer com eles laços
de cumplicidade fundos era essencial. Tão essencial que esses laços perduraram
no tempo e não foram abalados pelos diferentes caminhos partidários depois
percorridos pelos rostos da foto. É que esses rostos não nos falam apenas de um
tempo que lhes foi comum, mas de uma ética que partilharam. Daqui a quarenta e
nove anos, um livro escrito por oito jovens ativistas de hoje não terá estas
referências. Falará de precariedade, de desilusão, de emigração. Talvez fale –
espero eu – da democracia como uma promessa sempre querida.
Recordar vem do
Latim: re-cordis, voltar a passar pelo coração. Recordar as palavras e os
gestos de desassombro diante da ditadura, recordar o que custou cada rutura com
os cânones bafientos, recordar cada passo da aprendizagem da democracia muito
antes da sua conquista política e do sentido da combinação fecunda entre a
irredutível liberdade de cada um e o primado do coletivo, recordar também as
trivialidades do quotidiano (o piano de Mário Lino, o Volkswagen carocha de
Noémia de Ariztía avariado na auto-estrada alemã ou a má relação de Jaime
Mendes com os cães… - recordar tudo isto pode ser uma forma única de resistir à
lobotomia coletiva alimentada pelas grandes máquinas informativas
contemporâneas, que elimina subtilmente referências e critérios de juízo. Hoje,
cada vez mais, a História é-nos servida como um amontoado informe de flashes
sem sentido, diante do qual somos convidados a adotar a explicação mais
preguiçosa e superficial como a que vale. Neste quadro do primado do soundbyte, nada tem origens, e muito
menos origens complexas. Tudo é simples, linear, a preto e branco, e esgota-se
em dois dias de prime time televisivo.
A desmemória é uma
estratégia dos neutralizadores da História. Para eles, lembrar porquê e por que
não é uma ameaça. Ter consciência das raízes e dos caminhos percorridos e por
percorrer é uma potencial subversão. Os cordeirinhos, todos alinhadinhos –
mesmo que seja para o matadouro – dispensam bem a memória. Pois bem, nós não.
Os oito que a partilham connosco neste livro fazem dele um exercício de serviço
público. E assim homenageiam o poeta que escreveu: “As folhas vão-se / e nós também / Não é vento, é movimento / fluir do
tempo, amor e morte / agora mesmo e para todo o sempre. Amen.” Esse poeta é
Manuel Alegre. E eu tenho muita honra em partilhar esta apresentação e esta
convocação da memória com ele
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