A FOTO


2013-02-11

José Manuel Pureza e A FOTO

José Manuel Pureza foi um dos apresentadores do livro A FOTO em Coimbra e as palavras, repassadas de simpatia, que dedicou aos autores a todos sensibilizou sobremaneira. Agora oferecemo-las aos leitores do blog e do livro porque se elas dizem muito sobre aqueles anos 60 amortalhados pela ditadura dizem também muito, indiretamente, sobre quem as diz.
 
Eis o que José Manuel Pureza disse em Coimbra, em 19 de Novembro de 2011:
Raimundo Narciso começa o seu capítulo neste livro citando um excerto de Sophia de Mello Breyner Andresen. É belíssimo e é uma belíssima síntese do espírito e do conteúdo deste livro. Diz assim: “Este é o amor das palavras demoradas / moradas habitadas / Nelas mora / em memória e demora / o nosso breve encontro com a vida”.
 
O livro que aqui estamos a apresentar assume esse propósito de resgatar, em memória e demora, o breve mas denso encontro com a vida de oito jovens que, com mais treze outros, tiraram uma fotografia de circunstância, em 1963, no campo de futebol do Técnico. A revisitação desta fotografia é um exercício muito semelhante ao que o Professor Keating – personagem imorredoura de “O Clube dos Poetas Mortos” – fez com os seus alunos: ao olharem intensamente para as fotografias dos antigos alunos da academia de elite que agora frequentavam, os alunos de Keating ouviam os sussurros insistentes de “carpe diem” como desafio às suas vidas. Assim também nós, os leitores de “A Foto”, olhamos para a fotografia que motivou a escrita e ouvimos distintamente o Jaime Mendes, a Noémia de Ariztía ou o Joaquim Letria a falarem-nos da “sociedade tacanha e retrógrada (…) (que) não aceitava facilmente os jovens a intervirem e a contribuírem para as grandes mudanças que se avizinhavam como certas” – como escreve Teresa Tito de Morais – ou da “prossecução da utopia e a confiança num futuro melhor pelo qual vale a pena lutar; (…) (do) sentimento da importância da nossa ação individual e coletiva; (ou da) vivência da generosidade e do companheirismo, da alegria de viver, pensar e agir” – como escreve Mário Lino. Tirada no Portugal cinzento escuro em que se estudava para ter um modo funcionário de viver – e em que, como escreve Raimundo Narciso, “pior que os sustos era o medo que todos os dias de mansinho se insinuava nas vidas de quem não fora feito para estas vidas” – a foto traz sussurros de um claro carpe diem pronunciado no Português da primeira metade da década de sessenta.
É significativo que se trate de uma rememoração coletiva. Porque isso mostra como a política era, mais que tudo, um compromisso em que estar com os outros e tecer com eles laços de cumplicidade fundos era essencial. Tão essencial que esses laços perduraram no tempo e não foram abalados pelos diferentes caminhos partidários depois percorridos pelos rostos da foto. É que esses rostos não nos falam apenas de um tempo que lhes foi comum, mas de uma ética que partilharam. Daqui a quarenta e nove anos, um livro escrito por oito jovens ativistas de hoje não terá estas referências. Falará de precariedade, de desilusão, de emigração. Talvez fale – espero eu – da democracia como uma promessa sempre querida.
Recordar vem do Latim: re-cordis, voltar a passar pelo coração. Recordar as palavras e os gestos de desassombro diante da ditadura, recordar o que custou cada rutura com os cânones bafientos, recordar cada passo da aprendizagem da democracia muito antes da sua conquista política e do sentido da combinação fecunda entre a irredutível liberdade de cada um e o primado do coletivo, recordar também as trivialidades do quotidiano (o piano de Mário Lino, o Volkswagen carocha de Noémia de Ariztía avariado na auto-estrada alemã ou a má relação de Jaime Mendes com os cães… - recordar tudo isto pode ser uma forma única de resistir à lobotomia coletiva alimentada pelas grandes máquinas informativas contemporâneas, que elimina subtilmente referências e critérios de juízo. Hoje, cada vez mais, a História é-nos servida como um amontoado informe de flashes sem sentido, diante do qual somos convidados a adotar a explicação mais preguiçosa e superficial como a que vale. Neste quadro do primado do soundbyte, nada tem origens, e muito menos origens complexas. Tudo é simples, linear, a preto e branco, e esgota-se em dois dias de prime time televisivo.
A desmemória é uma estratégia dos neutralizadores da História. Para eles, lembrar porquê e por que não é uma ameaça. Ter consciência das raízes e dos caminhos percorridos e por percorrer é uma potencial subversão. Os cordeirinhos, todos alinhadinhos – mesmo que seja para o matadouro – dispensam bem a memória. Pois bem, nós não. Os oito que a partilham connosco neste livro fazem dele um exercício de serviço público. E assim homenageiam o poeta que escreveu: “As folhas vão-se / e nós também / Não é vento, é movimento / fluir do tempo, amor e morte / agora mesmo e para todo o sempre. Amen.” Esse poeta é Manuel Alegre. E eu tenho muita honra em partilhar esta apresentação e esta convocação da memória com ele

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