A FOTO


2012-07-27

O FERNANDO SILVEIRA RAMOS e a despedida meio século depois

Não é fácil despedirmo-nos para sempre de um amigo, e muito menos ainda de um amigo com quem partilhámos intensamente, ao longo de meio século, tanto das nossas vidas!

Conheci o Fernando Silveira Ramos em 1962. Na altura, estávamos a estudar Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, eu no 4º ano e ele no 3º ano.

Ao longo deste meio século fomos forjando uma grande amizade e cumplicidade, cimentada na convivência e partilha de inúmeros actos e acontecimentos importantes das nossas vidas: a participação no movimento associativo estudantil; os respectivos namoros e casamentos; o nascimento e crescimento dos nossos filhos e netos; a militância política na luta contra a ditadura e na defesa da liberdade, da democracia e da justiça social; a actividade profissional iniciada no Serviço de Hidráulica do LNEC e, depois, continuada em muitos outros projectos e iniciativas; o serviço militar obrigatório que fizemos juntos em Mafra e em Tancos; os inúmeros fins de semana passados no Casarão, empreendimento que construímos na Ericeira com outros dois casais amigos e onde convivíamos com muitos outros, cozinhávamos belos petiscos, fazíamos bricolage na nossa oficina e tratávamos do nosso viveiro de pássaros; os muitos passeios e viagens que fizemos com as nossas companheiras e, por vezes, com os filhos e os netos, em Portugal e no estrangeiro.

Recordo, com muita saudade, essas viagens, como aquela que fizémos de férias na Tunísia, em Dezembro de 2006.



O Fernando foi sempre uma pessoa alegre, bem disposta, participativa, com grande espírito de iniciativa e criatividade.

Quando o livro A FOTO estava a ser preparado, acompanhou sempre, com atenção e interesse, a sua elaboração, tendo participado com a Milú, sua companheira, nos dois almoços que fizemos na Ericeira para discutir a evolução dos respectivos trabalhos, contribuindo também com as suas críticas e sugestões.    
                               
                                                                            
Era inteligente, acutilante na argumentação, frontal, determinado e com grande capacidade de concretizar ideias, planos e projectos. Era uma pessoa séria, honesta, um homem solidário, de princípios e convicções.

Ao longo da sua vida, distinguiu-se sempre como um cidadão consciente e muito empenhado, assim como um excelente e reconhecido profissional, tendo prestado ao nosso país relevantes serviços.

Assim, no domínio da defesa da liberdade, da democracia e da justiça social, a sua intervenção iniciou-se logo nos tempos de estudante, enquanto activista do movimento associativo estudantil, tendo sido, no ano lectivo 1965/66, Presidente da Junta de Delegados de Curso da Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico. Nesse período, foi também um acérrimo opositor da ditadura do Estado Novo. Após o 25 de Abril, foi dirigente do MDP/CDE durante quase 20 anos, até 1994,  tendo participado depois, activamente, no processo da sua transformação no movimento Política XXI de que foi dirigente até 1999 e, na sequência, um dos fundadores do Bloco de Esquerda, integrando a sua primeira Mesa Nacional. No domínio profissional, para além da notoriedade e reconhecimento como Engenheiro Civil, especialista nas áreas da Hidráulica Marítima e da Engenharia Portuária, foi Técnico Superior do Laboratório Nacional de Engenharia Civil entre 1967 e 1972, integrou o quadro técnico da Consulmar - Projectistas e Consultores, Lda. desde 1970, tendo sido seu Director, bem como Administrador de várias empresas asociadas da área da Consultoria e Projecto, entre 1981 e 2011, e Presidente do Conselho de Administração da OC - Organização de Consultores, SGPS, SA, holding do grupo, desde 1997. Foi também membro dos órgãos de várias associações científicas e técnicas, entre os quais Presidente da Associação Portuguesa de Projectistas e Consultores, entre 1998 e 2006, Vice-Presidente do Conselho Científico e Tecnológico do Instituto para a Ciência e Tecnologia do Mar, entre 1998 e 2002, e membro da Direcção do Centro da Engenharia das Ondas, entre 2003 e 2009.

Em consequência desta actividade, foi agraciado em 2005, pelo Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, com o grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito Agrícola, Comercial e Industrial. Foi-lhe também atribuído, em 2009, o Prémio Fernando Abecasis de Excelência de Carreira, pela Delegação Portuguesa da International Navigation Association (PIANC) e, em 2010, o Prémio Secil de Engenharia Civil, em resultado  da sua intervenção enquanto reaponsável pela Direcção e Coordenação Geral do Projecto do Molhe Norte da Barra do Douro e, em particular, pela relevância da sua contribuição para a criatividade das soluções técnicas adoptadas. O Prémio Secil de Engenharia Civil, instituído pela empresa Secil, SA em 1995 e cuja atribuição é organizada em colaboração com a Ordem dos Engenheiros, constitui o mais importante galardão da Engenharia Civil em Portugal, muitas vezes também qualificado como o Prémio Nobel da Engenharia Civil Portuguesa. Acompanhei de perto a construção desta importante obra de engenharia que decorreu praticamente toda durante o meu mandato como Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, e  tive o grande prazer de a  inaugurar em Março de 2009.  Lembro-me até de, no meu discurso de inauguração, ter referido tratar-se de um empreendimento que reunia todas as condições para se candidatar, com sucesso,  a qualquer prémio, nacional ou internacional, atribuível a uma obra de engenharia civil. E, na realidade, assim veio a acontecer, com inteiro mérito, reforçado pelo facto de ser a primeira vez que o Prémio Secil de Engenharia Civil distinguiu uma obra marítima.





Um dos últimos projectos científicos em que o Fernando se envolveu profundamente foi o da concepção e contrução  de um modelo reduzido de um equipamento que aproveitasse a energia das marés para "consumo" de um instrumento musical do tipo aerofone ou, por outras palavras, que aproveitasse o movimento das marés para comprimir ar num reservatório e utilizar esse ar comprimido para produzir música atraves de um órgão - o órgão de maré. O objectivo era vir a construir este equipamento na margem direita do troço terminal do estuário do rio Douro. A ideia foi desenvovida ao longo de alguns meses na nosa oficina do Casarão, na Ericeira, e eu tive o prazer de colaborar com o Fernando nesta fase do projecto. Divertímo-nos imenso com a evolução dos trabalhos e o Fernando até levou ao Casarão o organeiro do Convento de Mafra para discutirmos com ele a ideia e percebermos melhor como funcionava um órgão. A apresentação pública deste projecto foi feita pelo Fernando  em Outubro de 2011, através de uma comunicação às 7.ªs Jornadas de Engenharia Costeira e Portuária da PIANC, realizadas no Porto.



No início de 2008, foi diagnosticado ao Fernando um tumor carcinóide intestinal, doença relativamente rara, muito grave e difícil de controlar. Tanto eu como a Paula seguimos sempre, muito de perto, a evolução da sua doença, tendo-o acompanhado diversas vezes, bem como a Milú, nas suas consultas aos médicos, tanto em Portugal como no estrangeiro, onde o seu estado era regularmente seguido por especialistas neste tipo de doença.

Apesar de toda a atenção e acompanhamento que lhe foram dispensados pelos seus médicos, o seu estado de saúde sofreu, nos últimos meses, um nítido e rápido agravamento, tendo-lhe sido recomendada a substituição urgente de duas válvulas do coração. O seu estado de saúde já nem lhe permitiu  ir à sessão de lançamento do nosso livro A FOTO, como muito gostaria. A intervenção cirúrgica ocorreu no dia 30 de Junho, mas o Fernando não conseguiu ultrapassar a fase pós-operatória, tendo falecido no dia 14 de Julho, com 71 anos de idade.
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Eu e o Fernando tínhamos, em geral, uma forma muito fácil de comunicar, de “acertar agulhas”, mesmo quando abordávamos questões mais difíceis ou complexas: uma curta frase, mesmo uma só palavra ou um olhar bastavam para estarmos em sintonia. A nossa confiança mútua era inabalável. A Milú dizia muitas vezes que as nossas cabeças pareciam que se encaixavam perfeitamente, que se complementavam.

Mas tínhamos também, por vezes, muitas diferenças na forma como analisávamos situações, acontecimentos e problemas, o que dava origem a grandes e acesas discussões, a ponto de, quando a Milú e a Paula estavam presentes, elas se zangarem seriamente connosco e nos deixarem a discutir sozinhos. Mas nós dizíamos que essas discussões serviam para reforçar a nossa amizade.
 
Um dos motivos recorrentes de discussão tinha a ver com a maior ou menor urgência com que cada um de nós gostava de resolver um problema, ultrapassar uma dificuldade ou concretizar um objectivo:

- Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje, dizia-lhe eu, ao que ele, invariavelmente, retorquia:

 - Não faças hoje o que podes fazer amanhã.

Por isso não consigo compreender porque é que, desta vez, o Fernando não seguiu o seu critério e não adiou a sua partida. E custa-me muito ter de aceitar esta despedida.


3 comentários:

  1. Mário depois de ler o teu excelente texto sobre o nosso amigo só me apetece transcrever os versos de um grande poeta escritos por altura da morte de Manuela Porto.

    Devia morrer-se de outra maneira.
    Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
    Ou em nuvens.
    Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
    a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
    os amigos mais íntimos com um cartão de convite
    para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
    a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
    às 9 horas. Traje de passeio".
    E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
    escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
    a despedida.
    Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
    "Adeus! Adeus!"
    E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
    numa lassidão de arrancar raízes...
    (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
    a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
    em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
    como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
    ainda tocada por um vento de lábios azuis...

    Muitos beijinhos para a Milú de mim e da Teresa.

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  2. Também assinalei o falecimento do amigo Fernando Silveira Ramos aqui: http://puxapalavra.blogspot.pt/2012/07/silveira-ramos-cidadao-exemplar-e.html

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  3. Conhecemo-nos ainda no Técnico e tivemos posteriormente varios contactos a nivel da vida profissional.
    Depois das reuniões na casa do Mário Lino na Ericeira, encontrámo-nos casualmente na rua, julgo que perto da loja do cidadão.
    Na altura ainda não me tinha apercebido da gravidade da sua situação.
    Sempre igual,contacto simples e afectuoso, olá estás bom, como vai isso,...
    Anteriormente tinha votado nele para a Ordem dos Engenheiros.
    Tentei votar na diferença, através da personalidade que ele assumia. Muito me penalizou a sua não eleição. Ele merecia-a.
    A vida às vezes é curta e madrasta.
    Zé Gomes de Pina

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